quinta-feira, 12 de junho de 2014


CRÔNICA:

"A regreção da redassão"

Semana passada recebi um telefonema de uma senhora que me deixou surpreso. Pedia encarecidamente que ensinasse seu filho a escrever:
 Mas, minha senhora – desculpei-me –, eu não sou professor.
 Pode ser, mas gostaria que o senhor ensinasse o menino. O senhor escreve muito bem.
 Não dá, minha senhora – tornei a me desculpar –, eu não tenho o menor jeito com crianças.
 E quem falou em crianças? Meu filho tem 17 anos.
Comentei o fato com um professor, meu amigo, que me respondeu: "Você não deve se assustar, o estudante brasileiro não sabe escrever". Passei a observar e notei que já não se escreve mais como antigamente. Ninguém mais faz diário, ninguém escreve em portas de banheiros, em muros, em paredes. Não tenho visto nem aquelas inscrições, geralmente acompanhadas de um coração, feitas em casca de árvore. Bem, é verdade que não tenho visto nem árvore.
 E você sabe por que essa geração não sabe escrever? Não sabe escrever porque está perdendo o hábito de leitura. E quando o perder completamente, você vai escrever para quem?
Taí um dado novo que eu não havia considerado. Imediatamente pensei quais as utilidades que teria um jornal no futuro: embrulhar carne? Então vou trabalhar num açougue. Serviria para fazer barquinhos, para fazer fogueira nas arquibancadas do Maracanã, para forrar sapato furado ou para quebrar um galho em banheiro de estrada? Imaginei-me com uns textos na mão, correndo pelas ruas para oferecer às pessoas, assim como quem oferece hoje bilhete de loteria:
 Por favor amigo, leia – disse, puxando um cidadão pelo paletó.
 Não, obrigado. Não estou interessado. Nos últimos cinco anos a única coisa que leio é a bula de remédio.
 E a senhorita não quer ler? – perguntei, acompanhando os passos de uma universitária. – A senhorita vai gostar. É um texto muito curioso.
 O senhor só tem escrito? Então não quero. Por que o senhor não grava o texto? Fica mais fácil ouvi-lo no meu gravador
 E o senhor? Não está interessado nuns textos?
 É sobre o quê? Ensina como ganhar dinheiro?
 E o senhor, vai? Leva três e paga um.
 Deixa eu ver o tamanho – pediu ele.
Assustou-se com o tamanho do texto.
 O quê? Tudo isso? O senhor está pensando que sou vagabundo? Que tenho tempo pra ler tudo isso? Não dá para resumir tudo em cinco linhas?
Só não estou muito certo quanto à perda do hábito de leitura. Para mim, os estudantes não perderam o hábito de leitura. E sabe por quê? Porque nunca o tiveram. E agora, com essa geração que cresceu sob o signo da televisão, dificilmente o hábito será implantado.
O Diretor do Departamento de Letras da PUC ficou impressionado, no vestibular realizado no meio do ano, com a qualidade do texto dos candidatos. Num trabalho de redação, cerca de 10% dos candidatos – pasmem – não conseguiram redigir uma única linha. Além disso, um inspetor conhecido contou-me que no início da prova viu um candidato gordinho debruçar-se meio sem jeito sobre o papel. Agarrou o lápis e, na tentativa de escrever, foi ficando vermelho, com as veias puladas, mordendo a língua, revelando um esforço descomunal. Pensei – disse o inspetor – que fosse explodir. Depois de uma hora, já com a sua pele assumindo um tom arroxeado, deu um largo suspiro, jogou o lápis pro alto e relaxou na cadeira.
 Acabou? – perguntou o inspetor, preocupado.
 Acabei – respondeu, passando a mão na testa suada.
 Não quer entregar?
 Um momentinho. Eu acabei só a primeira linha.
Os mestres estão alarmados com esses candidatos que se encaminham para ocupar cargos importantes na sociedade brasileira. "Fico preocupado" – disse o diretor – "imaginando como será a nossa elite de amanhã". Um dos sintomas mais evidentes das dificuldades de escrever aparece no próprio talhe da letra. Vendo as provas, fiquei estarrecido: uma caligrafia dessas que você encontra em quem só sabe assinar o nome. Todas tremidas. Tão tremidas que perguntei ao diretor se não tinha havido algum terremoto na hora da prova.
Não há dúvidas: o estudante brasileiro não sabe escrever. Não sabe escrever porque não lê. E não lendo também desaprende a falar. De onde se conclui que essa é uma geração sem palavra. Palavra de honra. Uma geração de poucas palavras (e muito som).
É assim que os homens aí estão formando um grande país. Quer dizer, os estudantes não escrevem, não lêem, não falam, não pensam. Tudo isso me faz pensar que estamos muito mais perto do que imaginava da Idade da Pedra. A prosseguir nessa regressão, ou a regredir nessa progressão, não demora muito estaremos todos de tacape na mão reinventando os hieróglifos. Neste dia, então, a palavra escrever ganhará uma nova grafia: ex-crever.

(Texto adaptado  - NOVAES, Carlos Eduardo. In: A cadeira do dentista & outras crônicas. São Paulo: Ática, 1999. Para gostar de ler, vol. 15)

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